sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Luar prateado parte III

Como um pesadelo! Eu queria correr, queria berrar, mas o medo, o medo não, o medo é natural e até saudável, o pavor! O pavor havia  tomado conta do meu corpo e paralisado cada um dos meus músculos! Nem respirar direito eu respirava! Da minha boca só saia um gemido minguado, um choro fraco, um lamento: eu ia morrer e seria igual a uma ovelha, indefeso e impotente.

-Au au au au au au au au... *ponf!

Só que não era eu quem a criatura queria. Ouvi uns latidinhos estranhos e algo pequeno bateu na minha perna. Levei um susto e isso me tirou do choque, me tirei e vi que um lobinho havia trombado comigo, atrás dele estavam seus irmãozinhos e seus pais, dois grandes lobos prateados, com a pelagem manchada de sangue... meteriam bastante medo se não fossem aquelas criaturas. Sim! criatura! Havia duas delas perseguindo a família lupina. Elas estavam caçando, acabaram de emboscar os lobos. E eu no meio daquilo tudo...

Vi um vulto e me joguei no chão, as coisas deram o bote, agarrei o lobinho que estava perto de mim e me encolhi, houve uma luta feia e os lobos levaram a pior. Quer dizer, eu não vi nada, porque estava encolhido no chão chorando de medo, mas quando o barulho da luta cessou, quando um silêncio aterrador banhou o local, eu tive coragem para me levantar e olhar em volta e vi os filhotes, pior, pedaços dos filhotes e nada dos pais.

-Au au au au, auuuuuu, auuuuuf

O lobinho que eu tinha salvo logo notou o que aconteceu e começou a latir e uivar, em desespero, como se estivesse chamando pelos pais. Mas chamou outra coisa...  Uma das criaturas resolveu voltar para acabar com o último da ninhada.

Ela veio caminhando calmamente, ereta e até com certa dignidade até que me percebeu. Então ela parou e ficou assim por um tempo, como se estivesse olhando para mim e o lobinho, depois colocou aquela longa língua negra para fora da boca, que ficou chicoteando no ar, ai ela se curvou e... eu me joguei no chão!

Foi bem na hora! A criatura passou por cima de mim e teria me pegado se eu tivesse hesitado! Ela rolou no chão e logo se pôs em posição de bote de novo e eu estava tentando me levantar, ainda abraçado ao filhote que tinha salvo. Deu para ver os músculos da perna do meu predador se contraindo, ela ia pular mais parou... encarou algo atrás de mim, emitiu um granido e saltou, dessa vez para longe, pondo-se claramente em fuga.

Virei-me, ainda prendendo a respiração, que quer que fosse era terrível o suficiente para imputar medo naquele demônio! Então eu o vi, usando uma armadura velha de briotita e levando uma espada bastarda e um fuzil nas costas.

-Co..comandante?

-Não devia andar por essas bandas a essa hora! É perigoso para quem não quer lutar!

Fui pego por uma explosão de sentimentos, vergonha, raiva, mas ao mesmo tempo aliviado.

-Eles acabaram com uma matilha de lobos aqui! Acho que caçam eles para...

-Mataram para te aterrorizar, estavam brincando com você.

-Comandante? Não acho que...

-Besteira! Essas coisas não são do seu mundinho, você não sabe com o que está mexendo.

-Então me explique! Quero dizer, por favor.

-Não vou perder meu tempo. Só aviso que elas estão crescendo em número, logo começarão a levar pessoas...

-Levar pessoas???

-Assim que elas tiverem tomado toda essa mata, as montanhas aqui em volta e os morros, elas vão começar a atacar as pessoas. Vão matar umas, se alimentar de outras e estas ainda terão sorte com relação àquelas que forem levadas para o ninho.

-Ninho?

-Sim, ninho, de onde estes pesadelos estão saindo. Fica num conjunto de cavernas, nas montanhas, ao longo dessa estrada, perto de onde era comum se ver lobos prateados...

-Na estrada? Essa não! É perto do vale dos lobos! Se elas infestarem aquele lugar elas fecham o único acesso para a cidade e...

-E nada, elas não pretendem isso.

-Comandante.

-Continuando! Os infelizes que forem sequestrados vão passar por um processo de transformação. Aquelas coisas transformam pessoas em monstros!

-...

-Tu não acredita né?

-Comandante, é que...

-Não importa como eu sei disso, se é o que ia perguntar, o que eu quero saber é se você vai lutar.

-Eu? Er... eu vou me casar e pretendo sair daqui logo, penso em levar meus sogros também e...

-Esquece! Vou te acompanhar até a cidade...

***

Não demorou muito para as previsões do meu comandante começarem a se revelarem verdadeiras. Durante três dias a cidade e as terras em volta sofreram com uma grande infestação de animais, todos fugiam dos bosques e das montanhas. Depois começaram a sumir alguns camponeses, a maioria caçadores e lenhadores que tinham que se embrenhar pelas florestas. Dos que sumiam, poucos retornavam e de forma tão bizarra que logo aprendemos a não desejar o retorno dos desaparecidos e a executar qualquer um que ousasse voltar. 

Apesar disso, ninguém se deu ao luxo de investigar as causas do problema. Quando porém um casal de nobres desapareceu (e isso foi na véspera do meu casamento) é que a guarda da cidade resolveu agir: montou uma expedição para buscar os extraviados, caçar a origem do problema e se possível dar cabo dela de uma vez. 

O problema era que aquela guarda não era nada menos que parte das milicias pessoais da nobreza local, "emprestada" para a segurança urbana. Serviam muito bem para manter o poder local fazer cumprir os mandos e desmandos dos seus senhores, mas nunca combateram o bom combate e não tinham a menor disciplina. E eu queria muito que a expedição desse certo, aquilo ameaçava meu futuro e minha futura família, mas sabia que aqueles homens não fariam nada melhor do que serem ceifados...

Não vou dizer que logo pensei em me voluntariar para liderar aquela trupe logo de início, o ultimo encontro que tive com aquelas criaturas ainda me horrorizava, além disso eu não queria realmente correr riscos que, na minha opinião, não eram minha obrigação correr! Mas eu, diferente dos outros habitantes do local, não era tolo o suficiente para achar que um resultado negativo naquela expedição não me afetaria no futuro e eu sabia que eles precisavam de uma liderança experiente. 

A primeira coisa que pensei foi em procurar meu ex-comandante, procurei o dia todo, já que meu casamento havia sido cancelado e adiado até que o sacerdote decidisse que a ira dos deuses havia cessado. Infelizmente não encontrei nem sinal de meu antigo líder de esquadrão e cheguei a achar que talvez ele tivesse comprado a dele lutando com aqueles demônios. 

Entrei abatido em minha casa e nem a festa animada com a qual o meu lobinho me recebeu (sim, eu levei ele para casa) me levantou o astral. Fui até meu quarto e retirei minha espada de seu esconderijo. A minha intenção era somente relembrar os velhos tempos e dedicar uma prece ao meu amigo desaparecido, porém, quando eu vi a lâmina, pensei que talvez eu pudesse ao menos vingar a morte de meu comandante. Tomei coragem, arrumei minhas coisas, afiei e embainhei minha espada e saí com a intenção de tomar o comando da expedição.

Só que mal sai de casa e dei de cara com Meredy:

-Hã? Que é isso meu amado? Por que está com essa espada? Não tinha prometido se desfazer dela?

-Meredy eu...

-Não me diga que pretende acompanhar aquela expedição?

-Eles prec...

-Meu amor e se você morrer? E se você for pego? Quem vai me proteger se esse mal avançar para a cidade?

-Mas...

-Quer que eu perca meu noivo? Quer que meus pais me obriguem a me casar com outro? 

-Não!

-Por favor! Deixe as tarefas de bárbaros para a plebe! Você tem futuro! Tem família! Não seja egoísta!

-Meredy!

-Por favor, jogue fora essa... essa ferramenta de ignorantes! Prove seu amor por mim!

Não consegui resistir, Meredy estava chorando e eu já não estava animado mesmo em participar daquilo. Além do mais, pensava eu, a culpa da baixa do meu ex-comandante era toda dele, que estúpido achar que poderia sozinho enfrentar aquelas coisas... Resolvi então fazer o que achava que era o certo:

-Está bem minha querida, não chore, só estou indo me desfazer de uma vez por todas dessa espada.

-É verdade?

-Juro do meu coração.

***
Você que me conhece hoje pode até achar que eu menti para ela, mas não, o idiota aqui foi realmente jogar aquela arma fora. Engraçado como muitas pessoas acham que, por não serem "militares" oficialmente, elas não tem obrigação nenhuma para a defesa do seu lar... hahahaha, como se aquelas coisas fossem fazer distinção de "guerreiro" para "civil" na hora de vitimar alguém.

Eu resolvi jogar minha companheira de batalhas no lago onde outrora eu e Meredy passamos bons momentos juntos. O local havia sofrido uma bruta transformação: a vegetação havia secado, o chão havia rachado, os animais haviam desaparecido e a água havia sumido, dando lugar a uma substância transparente, viscosa, brilhante e mal cheirosa. 

Arremessei minha lâmina no lago e fiquei observando ela afundar. No entanto não tive muito tempo para pensar no que fiz, senti algo por perto, tentei me virar, mas esse algo se lançou contra mim e acabamos caindo no lago! Senti a substância asquerosa por todo o meu corpo, tentei me levantar, mas o meu agressor me forçou a ficar imerso! Entrei em desespero, acabei soltando o ar, comecei a beber aquele líquido nojento e não demorou muito para que eu perdesse meus sentidos.

domingo, 19 de agosto de 2012

Luar prateado parte II

-Oh! Opa! Olha só quem eu vejo aqui! - Gritou ele do bar... Eu sempre esqueço que se a gente olha demais a pessoa percebe...

-Meu comandante! Que surpresa ver o senhor por aqui! - Disse eu sem me mover - Desculpe não poder conversar, estou um tanto ocupado! - Mal fiz menção em me mover...

-Espera ai! - Não foi um pedido, foi uma ordem. Eu não estava mais subordinado a ele, mas a força do habito...

-Vamos conversar? Para onde você está indo? Vou pegar o mesmo caminho e assim a gente conversa no caminho.

-Vou para a casa da minha noiva comandante. - Menti, estava indo para a loja, mas achei que com isso me livraria dele. Entenda mais uma vez, eu presava muito meu comandante, mas tinha medo dele tentar me arrastar para fora da vida que eu construí.


-Sem problemas! Lhe acompanho pelo caminho. - Doce ilusão... o comandante nunca largava um osso.

-Então comandante, como vai o senhor? O que faz por essas bandas?

-Bem. - Seco e direto, ele não estava ali de passagem - Vou bem. E você o que tem arrumado? - Ignorou sumariamente minha segunda pergunta e eu sabia que não adiantaria repeti-la.

-Montei uma oficina de engenhocas comandante, tem prosperado bastante, pretendo me casar e ingressar na real academia de engenharia em breve.

-E seu cavalo?

-Mantenho-o no rancho de meu sogro. Tärhil sempre foi um bom companheiro, além disso uso-o para viagens... Mas logo vou ter que comprar uma carroça ou um veículo automotor... Não tem muitos destes por aqui, mas tem muitas carroças a vapor e fui eu que as fiz. Não demora muito e eu faço meu auto! Na verdade quero ingressar na academia para isso...

-Entendo. E sua espada?

-Está na sala da minha casa. Reluz como nunca reluziu antes...

-Claro! Quando em combate eu mandava vocês enegrecerem as lâminas. Pratica muito com ela?

-Comandante, desde que vim para cá eu ando meio ocupado.

-Entendo. E sua armadura?

-Erm.... Bem... o elmo eu perdi, a couraça eu vendi e a cota está na casa dos meus pais.

-É uma pena, era uma boa armadura, era de briotita certo?

-Sim senhor, toda feita desse raro mineral, podia resistir até disparos de rifles menores.

-Não devia ter desfeito dela.

-Com todo o perdão comandante... ela não me tinha mais utilidade.

-Não?

-Comandante, a guerra acabou, os tempos são outros, não sou mais militar... - Não tive a audácia de incluir ele nessa afirmação, ele me esbofetearia ali sem dó - e agora quero construir minha família, ter filhos e ter uma carreira de sucesso trabalhando com máquinas a vapor e máquinas de combustão.

Ele me segurou pelo ombro. Virei-me e ele me encarou:

-Como assim não é mais militar?

Ele fez o favor de se incluir na minha afirmação, de tomar as minhas dores e de ficar bem raivoso comigo.

-Comandante, a guerra acabou e com ela o exército real. Não temos mais o que fazer além de tocarmos nossas vidas! - Já aproveitei para voltar a andar.

-Uma vez cavaleiro, sempre cavaleiro! Cacete! Não é por que não tem mais um contracheque dizendo que você deixou de ser militar!

-Pelos céus comandante! No fim da guerra foi o senhor que disse que era para eu esquecer tudo e procurar uma nova vida!

-Não disse para matar sua essência!

-Comandante, tenho que ir. é a casa de minha noiva. Boa tarde.

-Boa tarde. Depois a gente conversa mais. - Dito isso ele me fez a saudação militar local, mas eu não retribui.

***

Entrei, entrei sem bater na porta, sem me anunciar, na casa da família de Meredy. Isso seria uma grosseria muito mal vista naquela época, mas eu estava angustiado demais para pensar em alguns costumes.

-Mas o que! Nossa! Parece que você viu um fantasma! - O Pai de Meredy estava na sala.

-E vi... e vi...

-Querida! Faça uma efusão para o rapaz! MEREDY!!! Seu noivo está aqui! Sente-se rapaz, sente-se.

Meredy desceu as escadas com pressa, sua mãe me veio com uma bebida alaranjada, quente e bem cheirosa e eu quase me joguei numa poltrona.

-Oh! Querido, está branco!

-Hahahaha! Isso ele sempre foi - Brincou o pai dela

-O que aconteceu? - Perguntou a mãe... já era hora de me recompor...

-Hum... nada... nada.  Ah... Meredy... erm... Posso sair com Meredy, para um passeio, hoje? - Disse me dirigindo ao pai dela.

-Hoje é dia comercial, você deveria estar trabalhando, mas... pelo visto você está realmente precisando de um descanso hehehehe. Que mal lhe pergunte, que tipo de passeio.

-Queria passar um tempo com ela...

-Que tal um piquenique? - Disse Meredy tão prontamente que até ela se assustou com sua "audácia". - Ah... q-quero dizer a-acho que é...

-É uma boa sugestão minha noiva! - Disse tentando desembaraçar a situação - É meio em cima da hora, mas dá para nos arranjarmos... isto é se seus pais permitirem.

-Tem minha permissão - adiantou o pai.

-Certo! Vou aprontar a cesta...

-Deixe que eu faço isso minha filha - disse a mãe - Vá arrumar-se!

Meredy subiu animadamente para o seu quarto e eu fiquei proseando com seu pai, na sala, enquanto a mãe improvisava algumas guloseimas para levarmos.

***
Foi uma tarde agradável no final das contas. Passamos todo o tempo junto na beira de uma lagoa muito bonita e conhecida na região. Meredy não me deixou pensar no meu passado, o tempo todo me questionava sobre o meu... o nosso futuro: Casamento, filhos (queríamos muitos), velhice e com tudo isso, quando a morte chegasse, não seria assim tão ruim.

Hehehehe, pode imaginar, sonhava em ter uma vida tranquila, morrer aos sessenta, setenta anos, ter filhos e netos, boa carreira... trabalhar com o que gosto, parecia o melhor que eu poderia ter! Era como se eu tivesse esquecido de toda aquela energia destrutiva correndo e crescendo pelo corpo até conseguir sair numa explosão durante uma carga!!! Ahhh! Eu ainda sentia aquilo sim, um pouco, mas usava com coisas bobas! Uma discussão com um cliente, um mal dito contra um pivete... Achava que seria uma sorte se apagasse o pouco desse fogo que restava em meu coração.

Aliás foi um pouco disso, um pouco de não conseguir deixar as coisas para trás que me fez tomar o assunto com Meredy, enquanto nós voltávamos do passeio.

-Sabe... Estou com vontade de voltar a portar minha espada... o que acha?

-Credo! Aquele trambolho?

-Era... é um costume entre os cavaleiros.

-Você não é mais cavaleiro.

-Já fui. E uma vez cavaleiro sempre cavaleiro.

-Besteira! Se houver uma guerra, depois que nos casarmos e tivermos filhos você vai ir lutar?

-Bem er...

-Bem nada!! Acha legal matar pessoas? Resolver o problema de outros na ignorância e na força bruta? E se você morrer? Quem vai cuidar de seus filhos? Gostaria que eu arrumasse outro marido? Tivesse que ser uma amante paga de um homem de posses?

-Não!

Ela me abraçou forte.

-Então por favor não comece com essas ideias! Se não eles crescem e logo lhe tomam todo! Você é inteligente e bonito demais para isso, eu lhe amo e não quero ver fazendo papel de... de bárbaro!

-Meredy...

-Veja essa cidade! Pessoas dignas e de alta classe! Nenhuma dessas famílias se meteu com guerras! Olhe! Em quanto todo o país foi arrasado, aqui prosperou! Violência não leva a nada!

Me apertou mais forte. Parecia que ia chorar.

-Meredy, tudo bem... foi só um devaneio, prometo não fazer isso nem tocar no assunto.

-Jura? Jura por mim?

-Juro. Vou até jogar aquela espada fora.

Falei aquilo sem pensar e não demorou segundos para me arrepender do que disse, mas já era tarde.

-Oh amor! Faça isso! Ficarei muito grata se fizer!

Levei Meredy para a casa dela, jantei lá e passei boa parte da noite tendo uma prosa amigável com sua família, por fim adiantei a data do casamento para o final do mês e me pus de partida, afinal de contras já era bem tarde e se eu ficasse um pouco mais lá, minha guria poderia ficar mal falada.

Fui caminhando pela estrada, não levava Tärhil para a cidade pois eu tinha um tanto de vergonha dele que, sendo um cavalo de guerra se portava muito mal em ambiente urbano. A questão é que mal dei alguns passos e eu senti que eu gostaria de estar montado... do outro lado da estrada, agachada e me encarando estava aquela horrível criatura de novo! Pele branca, musculosa, garras e dentes grandes e afiados, aquela língua negra sibilando... Ela ia dar o bote, ia dar o bote em mim e eu estava petrificado pelo horror...


segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Luar prateado parte I

Sentado, com os cotovelos apoiados em sua mesa o oficial de pele clara e cabelos loiros grandes o suficiente para formar uma franja inconcebível pelo manual fita o vazio com seus expressivos olhos azuis-esverdados...

À sua frente, também sentado, seu adjunto o olhava como se esperasse uma resposta.

-Meu líder... perguntei se o senhor já desejou outra vida, ser um bem sucedido homem de família, se preocupando apenas com a família, a carreira e o fim da vida...

-Já... E faz muito tempo... Se faz sentido em falar nele...

***
É de onde eu venho, eu era oficial lá também, não tão distinto quanto sou aqui, mas era e era bem feliz com isso. Eu era de cavalaria, à cavalo ainda! Existiam alguns blindados movidos à vapor e eletricidade, mas eram raridade... Nosso exército não era tão poderoso, mas sem dúvida era bravo. O fato é que havíamos lutado uma grande guerra e perdemos. O inimigo impôs uma série de condições humilhantes e uma delas acabou com nossas forças armadas e logo eu me vi sem emprego. 

Mas não ache que eu estava preocupado ou triste... bom, de início triste, mas não preocupado. Tinha tudo para começar uma nova vida. Eu tinha juntado uma grana e ia abrir um comercinho em uma vila pouco conhecida e muito pacata, bem no interior. Cheguei lá com meu cavalo Tärhil , minha espada, um fuzil e dinheiro o suficiente para tocar minha nova vida.

Por incrível que pareça eu fui bem recebido e acolhido pelos habitantes locais, a vila basicamente girava em torno da nobreza agrária que lá residia, havia um escola para moças, mas tinha poucas alunas, um templo, um prostíbulo, algum comércio e só. Eu logo tratei de alugar um local para abrir minha venda e oficina de engenhocas, bem perto da praça central e uma quarto, num casarão que ficava na estrada que dava acesso ao povoado.

Esse casarão na verdade era do dono do "outro" comércio do local. Ele vendia tudo o que era preciso por lá, condimentos, tecidos, brinquedos... mas não era meu concorrente, ele não vendia engenhocas e até ficou feliz pela minha chegada... sabe na cidade tínhamos os nobres, o sacerdote e empregados, tanto das casas quanto da escola, alguns funcionários públicos também. No meio dessa hierarquia haviam os comerciantes e como só tinha ele fixo lá ele meio que se sentia "sozinho".

Sozinho em sua classe social, porque sozinho em si ele não era, ah... ele tinha uma bela família e eu, endurecido por tantas batalhas, nem sonhava mais ter. A esposa dele era atenciosa, maternal e a filha, Meredy era muito linda! Pele rosada e macia, seios grandes e firmes, longos cabelos negros e brilhantes, olhos cor de mel, um sorriso lindo, um jeito delicado e tímido... Ela não frequentava a escola de moças, havia sido educada desde pequena para ser uma boa esposa e ela dependeria de um marido, para defende-la e para ama-la. Para mim isso era perfeito.

Eu, claro, não demorei à mostrar meu valor, numa noite, ainda na minha primeira semana lá, acordei com o grito de Meredy! Tive que arrombar minha porta (uma das condições para minha estadia lá era que eu dormisse com a porta trancada por fora, para que a honra da garota não pudesse ser questionada) e dei de cara com ela, de camisola, segurando uma vela encarando com medo algo perto das escadas... logo em seguida surgiram seus pais, primeiro com cara de reprovação, haha, aquele pessoal tinha uma capacidade para pensar besteira muito rápido, mas depois mudaram o semblante para horror e medo. Então eu vi a criatura...

Estava perto das escadas, de quatro, pele branca, veias aparentes, garras, presas, sem olhos... bolas, você já viu muitos destes, mas aquela, aquela parece que foi a primeira vez que eu vi um... Eu teria paralisado de medo se não sentisse que a coisa estava de olho em Meredy, de olho hehehe, modo de dizer, mas ele estava com certeza querendo a garota, aquela língua longa e negra saltava para fora daquela bocarra e sibilava no ar...

Tomei coragem e avancei de mãos nuas mesmo! Sabe, naquelas condições era loucura, não sei se eu ainda estava deprimido pela derrota na guerra, ou se estava louco de amor, mas fui com uma ferocidade que o bicho até saiu correndo! Sai da casa e não vi sinal da criatura, bem... isso nos  cinco primeiros segundos, porque logo senti as garras e o peso dela nas minhas costas! Cai rolando e ela veio para cima de mim, era muito pesada e eu achei que seria o meu fim! No entanto ouvi um rosando e depois só vi uma coisa branco-prateada passando por cima de mim e derrubando aquela coisa... Demorei um pouco para perceber que era um grande lobo, um grande e belo lobo que me salvara a vida e estava engalfinhado em uma luta feroz com aquele demônio...

Não demorou muito os dois desatracaram, a criatura fugiu, ferida, para um bosque e o lobo saiu mancando, seguindo a estrada. Os meus anfitriões saíra da casa, ainda assustados e Meredy me abraçou com força, chorando, soluçando...

Depois disso não tivemos mais problemas. Passou um ano e meu negócio prosperou, comecei a namorar e fiquei noivo de Meredy e por isso tive que me mudar para uma casa no centro, se não ela ficaria mal falada... Entenda, eram outros costumes. Eu estava feliz, já não ligava para a derrota do nosso país e pelo fim da minha carreira militar. Muito de meus amigos vagavam trabalhando de capangas, mercenários, bandidos, mas eu não, eu ia construir uma família e viver bem, com conforto.

Foi então que eu o vi, sentado num bar (esqueci de falar que a cidade tinha um bar). Eu o poderia reconhecer em qualquer canto, com seus curtos cabelos escuros, pele bronzeada, castigada pelo sol, barba sempre feita, cicatrizes no rosto e no braço, olhos verdes... meu ex-comandante de esquadrão, um amigo a quem eu queria muito bem, mas que ao mesmo tempo eu queria longe, sabia que ele não deixaria eu levar aquela vida adiante...  


terça-feira, 7 de agosto de 2012

Níveis de leitura

Na minha última postagem, sobre o 1984, eu usei as expressões "primeira leitura, segunda leitura..." e muita gente (hahahaha muita gente lendo esse blog, eu sou bom mesmo em ficção...) pode ter estranhado o termo, achando que era preciso ler o livro várias vezes para chegar à aquela interpretação. Bom, a releitura de um texto é crucial para um melhor entendimento do mesmo, mas não é disso que vamos falar agora.

Significados diferentes:

Não é surpresa para ninguém que palavras, expressões possam ter vários significados. Quem usa redes sociais pelo menos convive muito com ironias e duplos sentidos. No primeiro caso o autor quer dizer algo contrário do que ele escreveu e um leitor que deparar com a mensagem fora do contexto dificilmente vai perceber isso, já no segundo existe um significado "ingênuo", mas o que conta mesmo é um outro, "malicioso"¹ que requer um pouco de raciocínio para ser compreendido. Esses são alguns exemplos e existem outros recursos literários que podem ser aplicados para brincar com as idéias de um texto.

Vários significados:

No entanto, em alguns bons textos o que temos são vários significados e TODOS eles são válidos. No 1984 por exemplo, temos a história de um herói tentando sobreviver sob um sistema opressor, temos uma crítica aos governos autoritários, à manipulação da história a disciplina da auto-ignorância, temos uma crítica ao stalinismo... O mesmo livro diz todas essas coisas e não há um significado "mais correto que o outro" e sim um "mais escondido que o outro".

Escavando o texto:

Ai que entram os níveis de leitura. A chamada "primeira leitura" é o significado que você extrai do texto sem fazer muito esforço. É o que há de mais superficial nele, o que é visível. Um significado que exija um pouco de raciocínio, uma abstração um pouco maior do texto, mas que você pode perceber ainda enquanto lê, ficaria na segunda camada, ou "segunda leitura". Aqueles que exigem um raciocínio maior, que você precisa parar para pensar, usar um pouco de seu conhecimento de mundo ficaria na "terceira leitura". Uma "quarta leitura" é aquela na qual você reflete o texto levando em conta o autor e as condições na qual o livro foi escrito.

Níveis ocultos:

Existem significados que nem o próprio autor sabe que colocou no seu texto e só são descobertos levando em conta também a vida pessoal, a história e a psicologia do mesmo. Da mesma forma, padrões no texto podem revelar muito, sobre o seu autor.

Aproveitando melhor o texto:

Não é preciso saber sobre o autor nem contexto histórico para curtir uma boa leitura. No entanto, só tendo ciência desses fatores é que é possível contemplar as verdadeiras dimensões de uma obra. Os níveis de leitura não são necessariamente a quantidade de vezes que você leu fisicamente o texto, mas sim de quantas formas diferentes você enxergou o que foi escrito.